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20 de ago. de 2013

Útero livre

Motivos pelos quais a criminalização do aborto é estúpida, injusta e cruel.


tirem-seus-rosários-dos-nossos-ovários
Marcha das Vadias de Porto Alegre - RS

Brasil, um país laico


Na época do Brasil Colônia a religião oficial era o catolicismo. Em 1824, no Brasil Império, passou a ser permitida a liberdade de crença em espaços não-públicos. Em 1890 um decreto oficial estabeleceu de vez a liberdade de culto, mas a Igreja Católica ainda era oficial. No ano seguinte a Constituição Federal aparece de forma a definir o Brasil como um Estado laico - sem religião oficial.

As igrejas de uma forma geral são contra a prática abortiva, pois consideram um zigoto (célula-ovo) como sendo já o princípio da vida humana. Mas, como eu disse, a Constituição nos define como cidadãos de um país laico, com liberdade de crença ou não-crença. Em momento algum essa mesma Constituição permite que eu obrigue uma pessoa que não segue minha religião a obedecer às doutrinas da minha igreja. Portanto, qualquer argumento que inclua preceitos religiosos é inválido e a criminalização do aborto é estúpida.


Embriologia Humana


Após o contato do espermatozoide com o ovócito, há um período de cerca de 30 horas para que a fecundação se efetive, formando assim o zigoto. Zigoto, pela definição da comunidade científica é uma célula totipotente, ou seja, capaz de guardar as características genéticas dos progenitores, e que, através de divisões mitóticas dá origem ao embrião. Como você pode perceber, zigoto não é feto.

fecundação


O sistema nervoso aparece por volta dos 18 dias de gestação e continua se desenvolvendo durante toda a gravidez e ainda após o nascimento. Apenas na quinta semana o embrião terá as estruturas completas que darão origem à maior parte do esqueleto axial (cabeça, pescoço e tronco). Apenas por volta do 14º dia teremos um embrião. Neste período, o embrião ainda pode se "dividir" em dois ou mais (o que dá origem aos casos de gêmeos univitelinos ou monozigóticos). Na dúvida se esse embrião é ou não vida humana, eu lhe digo: nenhum ser humano pode gerar outro ser por divisão celular. Eu, ser humano, nunca vou conseguir me "dividir" para formar um novo ser. Eu, ser humano, só posso gerar outro ser pelo "método" que vocês conhecem muito bem. Portanto, um embrião não é um ser humano e sim um amontoado de células. E ainda tem essa: estima-se que cerca de 50% dos ovócitos fecundados não conseguem alcançar a parede do útero e são eliminados. Se você, mesmo depois de ler a seção anterior, estiver pensando mas tudo é vontade de Deus... Seria Deus um genocida?

Um embrião é, portanto, nada mais que um amontoado de células com potencial para dar origem a uma vida humana. Então eu te digo: o que são os espermatozoides? E eu mesma lhe respondo: células com potencial para dar origem a uma vida humana. Então vamos pensar: se um espermatozoide tem potencial para gerar vida humana, bater punheta é assassinato em massa? E te pergunto mais uma vez: o que são ovócitos (ou óvulos, pela nomenclatura antiga)? E eu mesma lhe respondo: células com potencial para dar origem a uma vida humana. Quando uma mulher menstrua, o ovócito não "aproveitado" (fecundado) é eliminado juntamente com a parede uterina. Então temos que fazer o quê? Parar de menstruar? Quando um homem ejacula e, supostamente, engravida uma mulher, apenas um espermatozoide é o vencedor. E os outros milhares? ASSASSINATO! Por favor, né? Sejamos coerentes.

Não faz sentido considerar que um ovócito fecundado é vida, mas um ovócito separado de um espermatozoide não tem o mesmo valor. O nome disso é hipocrisia. Se for para ser radicais, sejamos radicais! Mas acho difícil né? Acho que ninguém aqui faz sexo só para reprodução, então... somos todos assassinos? A resposta é não.

Algumas observações:
1) Se você já tomou anticoncepcional, você impediu a formação de vários ovócitos, sabia? Você, então, impediu a formação de células com potencial para gerar uma vida humana. Se você já tomou anticoncepcional ou se tem uma namorada que toma, mas é contra o aborto, você é hipócrita.
2) A pílula do dia seguinte tem vários mecanismos de ação, dependendo da etapa do ciclo menstrual em que a mulher se encontra. Ela a- impede a nidação (o ovócito já foi fecundado); b- inibe/retarda a ovulação; c- altera a motilidade tubária; d- dificulta a penetração do espermatozoide no muco cervical. Portanto, se você é contra o aborto e já tomou pílula do dia seguinte, você é hipócrita.
3) Os métodos contraceptivos em geral impedem a fecundação de forma direta ou indireta. Se você é contra o aborto, mas usa pílula anticoncepcional, DIU, SIU, espermicida, fez laqueadura de trompa ou qualquer outra coisa que impeça a formação de óvulos, a liberação de espermatozoides ou a fecundação, você é hipócrita.

O espermatozoide e o ovócito carregam em si todo o código genético para gerar um novo ser. Por que separados eles não têm valor nenhum, mas unidos são considerados "vida humana"?

A comunidade científica considera que o cessar e o iniciar da vida estão atrelados à atividade cerebral. O embrião se torna um feto por volta da 10ª semana após a concepção, dando início ao período fetal que vai até o momento do nascimento. No período fetal começa a formação dos órgãos e, nosso ponto crucial, da atividade cerebral.

O Conselho Federal de Medicina apoia oficialmente que a mulher possa decidir pelo aborto até que seja completada a 12ª semana de gestação. Até o fim da 11ª semana não se fala em atividade cerebral considerável. Nesta semana, a principal transformação fisiológica pela qual passa o feto é a separação dos dedos das mãos e dos pés e a realocação do útero materno. Na 12ª semana começam outros fenômenos como separação dos olhos, secreção de bile e urina. Ao chegar nessa semana, as células nervosas começam a se multiplicar rapidamente e  as sinapses estão se formando. Então, o feto adquire o reflexo. A partir desse momento, a prática abortiva se torna, então, a retirada de uma vida.

O que diferencia os seres humanos de outrem é sua capacidade de raciocinar, ter consciência, se comunicar. O que caracteriza a espécie humana é nossa capacidade cognitiva, uma exclusividade não encontrada em nenhuma outra espécie animal. Quando morremos, significa que nosso estado de consciência cessou. Portanto, para que vivamos, é necessário que esse mesmo estado de consciência esteja presente. É com base nessas informações que o STF permite o aborto de fetos anencéfalos quando da escolha da gestante. Não faz sentido permitir o aborto de anencéfalos, mas não permitir o aborto de embriões (que, obviamente, também são anencéfalos).

Ovócito, espermatozoide e embrião são, os três, células capazes de originar uma vida humana, mas nenhum deles é vida humana. Portanto, a criminalização do aborto é estúpida.


Quando começa a vida?


Para a comunidade científica ficou claro: a vida começa com a 12ª semana de gestação. A vida começa quando começa a atividade cerebral. A vida humana existe quando existe o estado de consciência. Você tem todo o direito de discordar de mim e da comunidade científica. Você tem todo direito de seguir sua religião e considerar um zigoto como um ser humano, um filho de Deus. Você tem todo direito de estar esperando um filho e já considerá-lo como um filho mesmo na 3ª semana de gestação. O que você não tem é o direito de obrigar as demais pessoas a pensarem como você. Somos um país laico e livre, portanto, a criminalização do aborto é estúpida.



Métodos contraceptivos falham.


O método mais eficaz (implante, com taxa de falha de 0,05%) não é oferecido pelo SUS. Entretanto, o SUS oferece o DIU, com taxa de erro de cerca de 0,8%. Nesse caso, vale lembrar que em muitos lugares do país não tem nem água, que dirá internet. É muito pônei cor-de-rosa acreditar que todos os brasileiros têm o mesmo acesso à informação que você. O Brasil não é o mesmo em todos os seus cantos e, portanto, a criminalização do aborto é uma estupidez.


Adoção


"Para quê abortar? É só ter o filho e dar para a adoção caso não consiga criar". NÃO! Não é  ter o filho e dar para a adoção. A partir do momento em que o feto começa a se desenvolver como vida humana, os laços fraternos entre mãe e filho só aumentam e, não, não é nada simples dar um filho para a adoção. Somos o Brasil e nossos orfanatos estão longe de ser iguais às versões de Chiquititas.

Chiquititas


Aborto é uma questão de saúde pública e nada mais


Nos países desenvolvidos a história se repete: após a legalização, o número de abortos diminui. Na Áustria, por exemplo, segundo a Eurostat, entre variações abruptas e períodos estáveis, a taxa de abortos legais caiu de 15% (1960-1974) para 4,1% (1989) e se mantém em cerca de 3,9% e 2,8% desde então. Você pode pensar "ah, mas Europa é uma coisa". E eu te dou então o exemplo de nosso vizinho latinoamericano, o Uruguai. Em outubro do ano passado o aborto até a 12ª semana de gestação foi descriminalizado por lá e os resultados são otimistas! Após a legalização, o número de abortos diminuiu, passando de uma média de 33 mil/ano para 4mil/ano - isso ocorre porque, com a legalização, o processo abortivo inclui acompanhamento psicológico e, dessa forma, muitas mulheres desistem da prática. Além disso, após a legalização, em 2550 abortos realizados de forma legal e segura, nenhuma morte foi registrada no país.

Uruguay-aborto-legal


No Brasil e em outros lugares onde o aborto é criminalizado, ele não deixa de existir. Pelo contrário! Criminalizar o aborto não impede que ele seja feito. Em momentos de desespero, muitas mulheres procuram por pessoas (médicos ou não) que fazem o procedimento de forma ilegal e sem a segurança necessária. Com isso, além do aborto continuar acontecendo, existe um fator ainda pior: as mulheres que se submetem ao procedimento morrem. Morrem aos montes. E, como a proibição não inibe o fato, eu repito que a criminalização do aborto é estúpida, além de cruel.


Desigualdade Social


No Brasil, apenas as mulheres pobres são obrigadas pela lei a manter uma gravidez. Casais que têm uma melhor condição financeira têm a possibilidade de realizar o procedimento em vários países do exterior. Uma lei que não abrange toda a população não deve ser mantida e, portanto, a criminalização do aborto é estúpida, cruel e injusta.


O papel do Estado


Um país que não tem educação de qualidade não pode condenar a mulher que aborta.
Um país que não tem religião oficial não pode condenar a mulher que aborta.
Um país que não tem orfanatos de qualidade e que tem tanta burocracia não pode condenar a mulher que aborta.
Um país que não tem um sistema de saúde de qualidade não pode condenar a mulher que aborta.
Um país que não abraça o menor órfão, morador de rua, passador de fome, não pode condenar a mulher que aborta.
Um país que não oferece oportunidades iguais para suas crianças e adolescentes, não pode condenar a mulher que aborta.



REFERÊNCIAS
Para fins de direitos de imagem, a foto utilizada neste post não é de minha autoria.

4 comentários:

  1. Eu não tenho opinião formada sobre o aborto até porque do jeito que a legislação brasileira penal descreve hoje, existe dois tipos de aborto legal: o para salvar a vida da gestante ou fruto de estupro. Ora pensando em princípios jurídicos, como posso eu (lei) achar que a vida do feto decorrente do estupro é menor que outro bem jurídico "menor" que é a dignidade da pessoa humana, nesse caso a mulher. Se a vida é o bem mais importante juridicamente falando e deve estar acima de qualquer outro, ou a lei coloca tudo como proibido e assume que a vida é maior do que qualquer outro bem jurídico protegido ou descriminaliza tudo. Esse meio termo é ridículo. Se já se admite fazê-lo para o estupro, já tem meio caminho andado. Contudo, devo dizer que acho 12 semanas muito (a pesquisa com células tronco, decorrentes de embriões, na Europa por exemplo é admitida apenas com embriões excedentes {proibida a clonagem}, os quais devem ser destruídos após o 14º dia de fertilização. Quem são esses médicos (conselhos) no Brasil para colocar esse termo?)Será que a comunidade médica internacional é menos estudada que o Brasileiro? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, nem 14 dias nem 12 semanas. Outra que temos que tirar um pouco esse discurso de Estado laico. Quando se estuda direito, vemos que toda definição provém de aspectos científicos. É mais uma questão legal/científica do que religiosa. Continuando, concordo que os métodos contraceptivos falham em 0,05% dos casos. Mas e quanto ao casal que sem pensar e só querendo farrear, faz sexo sem proteção e a mulher fica grávida, mesmo podendo ter usado camisinha, pílula do dia seguinte? O corpo é meu, faço o que quiser? Tenho dúvidas desse caso, pois mesmo tendo direito sobre nossos corpos, ainda temos que nos restringir e não fazer determinados comportamentos. Se bem que as pessoas hoje fumam até terem canceres e ainda assim precisamos custear o tratamento delas já que não se cuidaram, porque não isentar as pessoas de todo e qualquer ato que fizerem sem medir as consequências?!!! Como disse, não sei se sou a favor e sem querer ficar em cima do muro, como homem não posso ser contra, pois não viverei isso, mas quero entender cada vez mais sobre os aspectos a favor. Só estou usando meu direito de pensar. Não estou acusando ninguém.

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    1. Gustavo, concordo plenamente quando você diz "devemos retirar totalmente esse discurso de estado laico". É exatamente isso que fala o primeiro item. Somos um país laico e qualquer pessoa que tente defender os direitos de um embrião com base em qualquer fundamento religioso, tem um argumento inválido.
      E, no caso da gravidez por irresponsabilidade mesmo, eu te digo que é muito egoísmo pensar assim, pois dessa forma os justos estarão pagando pelos pecadores. Só porque alguns casais engravidam por irresponsabilidade significa que todos foram irresponsáveis? A resposta é não.

      Mas, apesar de toda balela que escrevi, acredito que é um argumento iderrubável quando a gente vê que em todos os lugares onde o aborto é legalizado as mulheres não morrem mais por causa desse procedimento. Com o aborto sendo uma prática ilegal, elas fazem do mesmo jeito, mas sem apoio médico, sem apoio psicológico e ainda ameaçadas pela justiça. O resultado é que o feto (tão defendido por quem é contra o aborto) morre do mesmo jeito e leva junto a vida da quase-mãe.

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  2. Aquele que não está disposto a respeitar o pensamento do outro, não deveria nem escrever... não escrevi "balela". Coloquei argumentos jurídicos e científicos que me fazem ter dúvida do que seria certo ou não. Não tenho opinião formada e nem será formada por alguém que não tem o mínimo respeito na hora de responder.

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    1. Gustavo!!! Que hora eu disse que você escreveu balela? Eu disse "Mas, apesar de toda balela que escrevi (...)". Que EU escrevi. EU, Bianca, escrevi. Escrevi, pretérito perfeito na primeira pessoa do singular. Em momento nenhum tive a intenção de te faltar ao respeito, eu hein ._________.

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