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16 de mar. de 2014

Dias de Luta

Você precisa disso tudo pra quê?

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Eu gasto de duas a três horas, todos os dias, com transporte público. E vejo, todos os dias, alunos da mesma universidade que eu, irem para a aula de carro. Eu vejo garotas com roupas caras, iPhones na mão e tênis de marca no pé. Vejo garotos que gastam o que eu ganho no mês inteiro em um feriado prolongado. Eu vejo jovens da minha idade que têm tudo na mão e não dão valor ao dinheiro que têm. Jovens que são presos pela lei seca e liberados no dia seguinte pois o pai paga a fiança. Simples assim. Fácil assim.


Eu acordo todos os dias úteis as 7h da manhã. Engulo um pão e me entupo de café, enquanto procuro meu uniforme, separo a roupa da academia e penteio os cabelos. Trabalho todos os dias úteis de 8h as 17h para ganhar um salário razoável. Pago inglês, francês, academia, conta de água, telefone, internet, Cemig, gás, previdência privada, aluguel. Meu emprego é bom, mas me consome e vou mal em muitas matérias da faculdade. Por isso, vou demorar mais que o esperado para me formar. Mas não posso largá-lo, senão minhas contas vencem e fico sem um teto, o que me obrigaria a voltar para a casa de meus pais e trancar a faculdade.

Eu pego o ônibus lotado, entupido de alunos de cursos técnicos, trabalhadores que pegam as 8h e demais cidadãos. Rezo todos os dias para que um homem nunca resolva me assediar sexualmente, porque eu realmente acho que morreria de vergonha e medo de reagir. Desço uma hora e meia depois. Suo, tenho dor de cabeça, mas tento abstrair tudo com meu fone de ouvido. Minha mochila é pesada, pois do trabalho vou direto para a academia e, de lá, para a faculdade. Carrego minha casa comigo.

Eu vejo garotas loiras de pele bem cuidada e, quando me olho no espelho, assusto. O cansaço toma conta de mim. O carnaval chega e todos viajam. Eu não. Minha família nunca teve dinheiro para viajar. Eu nunca vi o mar. Eu vejo estudantes que ficam em casa o dia todo, por conta apenas de estudar, mas vão para a sala de aula "zoar" e repetem e repetem e repetem a mesma matéria, algumas até bobas demais. A universidade é pública, eles têm dinheiro caso queiram pagar uma particular... Quantos jovens de classe baixa estão sonhando com a UFMG, mas têm que se matar para pagar a mensalidade da Puc, da Uni-BH, da Milton Campos?

Eu os vejo com a vida fácil. Nasceram assim. Têm 18, 19, 20 anos. Nunca trabalharam, nunca precisaram lutar para ter o que têm. Nunca chegaram em casa com vontade de comer algo diferente, mas só encontraram pão, ovo, arroz - não estou sendo ingrata, graças a Deus nunca passamos fome, apesar de todo o aperto. Graças a Deus estou na universidade, com muito esforço, graças às cotas para alunos de escolas públicas que existiam na época e graças ao meu grande esforço para me formar em uma escola PÉSSIMA e sem estrutura. Pobres professores...

Eu vou ao supermercado comprar um lanche para o intervalo de aulas e vejo famílais enchendo os carrinhos com itens que nunca passaram pela minha geladeira e, se passaram, foi raro. Vejo pais comprando para seus filhos o Danoninho, a Nutella e o Sucrilhos que minha mãe não pode comprar para mim nem para meus irmãos. Eu vejo pessoas da minha idade com tudo na mão. Tudo. Carro, dinheiro, conforto, sossego, oito horas de sono, iogurte integral, peito de peru, passagens aéreas, dinheiro para a academia, dinheiro para intercâmbio. E elas nasceram com isso, nunca precisaram trabalhar, nem lavar a louça, nem arrumar a própria cama de manhã.

Eu vejo minha mãe - professora do maternal, pré-escola, primeira, segunda e quarta séries - se matando de trabalhar, contando os meses para sua aposentadoria. Me mato de trabalhar e perco os fins de semana para conseguir colocar a matéria em dia. Vejo gente morando em apartamentos de 200 m² e me lembro de quando tivemos que nos mudar às pressas por não conseguirmos pagar o aluguel, lá em São Paulo. Sonho em ter uma estante de livros, mas só consigo ler se vender os que tenho e, assim sendo, não consigo guardar nenhum, por mais que os ame. E aí eu me pergunto: será que isso tudo é justo?

Eu vejo pessoas que pagam um absurdo em uma camiseta só porque elas têm um jacaré bordado no peito e, acredite em mim, muitas dessas pessoas acreditam que são o que têm, o que vestem. Vejo pessoas que te olham torto se ceu celular é sem muitos apetrechos - Como você consegue viver com isso?. Vivendo. Eu não sou o que tenho. Eu vejo pessoas que têm tudo fácil, desperdiçam comida no prato, gastam rios de dinheiro com óculos de armação importada, com tênis da marca "x" e com um milhão de bolsas diferentes (Deus, quem precisa de tantas bolsas?).

Eu vejo tudo isso e penso nos nossos valores, no nosso conceito de igualdade, de justiça e no discurso meritocrático que tantas pessoas carregam no peito e gritam aos sete ventos como a verdade universal. É como se meu professor de Antropologia Cultural realmente estivesse certo, por mais que eu me recuse a aceitar: nós somos o que temos. Somos? Eu vejo tudo isso e penso que, enquanto eu acho que luto muito para conseguir exercer a profissão que amo e morar na cidade que amo, tem pessoas em condições muito piores que as minhas. Milhares delas. Pessoas que têm que escolher todos os dias entre sonhar ou sobreviver. Meu caso é por aí, mas ainda estou bem. 

Quantas vezes já me senti injustiçada por conviver com pessoas que tanto têm enquanto eu tenho que lutar tanto para comer, morar e estudar? Às vezes fumo um cigarro para parar de pensar. Olhar para quem está acima de mim nessa inescrupulosa e impiedosa cadeia social me deprime um pouco, de vez em quando. Mas às vezes olho para quem tem menos do que eu. Para quem nunca vai ter a chance de tentar entrar em uma universidade. Para quem nem sabe o que é universidade. Para quem tem que engraxar sapatos, servir comida de gente rica, fazer faxina, e faz isso tudo com dignidade e nenhum pouco de vergonha. Eu sou lutadora e milhões de brasileiros são muito mais do que eu. Sei que lutar pelo dinheiro, pela minha futura profissão e pelo meu sustento faz de mim uma pessoa grande, uma pessoa que dá valor áquilo que tem, uma pessoa que pensa no próximo. Mas não deixo de ficar indiginada com tanta diferença, estampada na minha cara todos os dias, a todo o tempo, sem exceções, sem piedade.

Não sou apegada a bens materiais. Não quero o carro do ano, nem um tênis de R$500, uma bolsa de mil dólares ou uma gaveta cheia de pólos da Lacoste. Nada disso. Tenho amigos com ótimas condições financeiras, seja porque o pai foi um lutador, ou porque foi um pilantra que deu certo explorando os outros. Aceito isso. O mundo é dos espertos, não é? Não odeio pessoas ricas, eu só queria que elas enxergassem um pouco melhor como é o mundo fora de seus submundos. Não estou querendo discutir política. É só um desabafo mesmo.
Para fins de direitos de imagem, a foto utilizada neste post não é de minha autoria.

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